Poucos nomes na arquitetura paisagística brasileira carregam tanto peso e significado quanto o de Rosa Grena Kliass. Aos 90 anos, a paulista nascida em São Roque já viu suas ideias florescerem em algumas das áreas mais simbólicas do país — não apenas por sua beleza, mas sobretudo pelo impacto social e urbano que provocaram. Sua história é marcada por convicções firmes, compromisso com o coletivo e uma rara capacidade de ler o território com sensibilidade técnica e política.
Desde a década de 1950, quando se formou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Rosa enxergou no paisagismo muito mais do que um apêndice da arquitetura. Mesmo que essa disciplina surgisse apenas no último ano da graduação, para ela, aquilo era destino. E foi com essa clareza que ela traçou seu caminho, desafiando estruturas e expandindo os limites de uma profissão que ainda engatinhava no Brasil.
Uma trajetória semeada com coragem e propósito
Em um tempo em que o nome de Roberto Burle Marx era quase sinônimo de paisagismo no Brasil, Rosa Kliass construiu uma linguagem própria, profundamente conectada ao urbano, ao coletivo e à funcionalidade dos espaços. Seu projeto para a Avenida Paulista, em 1973, e a revitalização do Vale do Anhangabaú, na década de 1980, são provas incontestáveis disso.
Nos projetos, Rosa pensava além do verde ornamental: imaginava estruturas, fluxos, permanências. Rebaixar avenidas, devolver praças aos pedestres, desenhar mobiliários que acolhem em vez de afastar — tudo isso era parte de uma abordagem que, ao longo dos anos, moldou a identidade do paisagismo contemporâneo brasileiro.
A arquiteta Ciça Gorski, que trabalhou lado a lado com Rosa em diversos projetos, define bem essa contribuição: “A contribuição dela é plural, excepcional e de alta qualidade. Difícil encontrar profissionais que tenham feito tantos espaços públicos e em todas as regiões do Brasil como ela fez.”
O Brasil como território de transformação
Muito além de São Paulo, Rosa deixou sua marca em diversas regiões do país. Em cidades como Belém, Macapá, Salvador e São Luís, seus projetos buscaram resgatar o valor simbólico e ecológico dos espaços públicos. No Norte do Brasil, por exemplo, parques como o do Forte, no Amapá, ou o Mangal das Garças, no Pará, são reflexos de um olhar cuidadoso que integra urbanidade e natureza de forma respeitosa.
Mas seu trabalho não se limitava ao projeto em si. Rosa sempre compreendeu que a paisagem urbana carrega dimensões políticas e sociais. E foi nesse sentido que ela assumiu também o papel de articuladora institucional. Nos anos 1970, quando o paisagismo ainda não era nem ao menos reconhecido como campo autônomo no Brasil, fundou a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (Abap) e promoveu eventos internacionais que colocaram o país no mapa da arquitetura da paisagem.
Segundo Eduardo Barra, que presidiu a Abap em duas gestões, “Ela trazia essa visão de mundo para os arquitetos locais. Ainda em 1978, quando o ensino do paisagismo no Brasil era incipiente, ela organizou um congresso internacional com profissionais de todos os cantos do mundo. Isso teve um impacto gigantesco.”
Mais do que flores: a força do pensamento paisagista
Embora seu nome evoque delicadeza, Rosa nunca foi condescendente. Ao contrário: foi firme em suas ideias e incansável na defesa de um paisagismo com responsabilidade social e planejamento técnico.
O arquiteto José Luiz Brenna, que trabalhou com ela por mais de sete anos, reconhece essa postura combativa como uma de suas grandes virtudes: “Rosa apresentava suas demandas e necessidades com tanta clareza e firmeza que era impossível ignorá-las. Ela encarna o empoderamento feminino desde sempre.”
Sua atuação também foi fundamental para transformar o entendimento sobre o que é um projeto de paisagismo. Em vez de limitar-se ao repertório botânico, Rosa passou a montar equipes interdisciplinares, incluindo geógrafos, engenheiros e biólogos, para que as soluções paisagísticas respondessem verdadeiramente ao contexto ambiental e urbano de cada local.
Essa prática se consolidou com uma filosofia própria de trabalho: primeiro a estrutura, depois a forma. A frase que ela repetia com frequência nos projetos sintetiza sua visão metodológica: “Depois de esgotadas todas as questões estruturais, agora vamos em busca da forma.”
O reconhecimento e o legado
Em 2019, ao receber o Colar de Ouro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Rosa se tornou a primeira mulher a conquistar a honraria máxima da arquitetura nacional — juntando-se a nomes como Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e o próprio Burle Marx. Foi o reconhecimento de uma trajetória incomum: não apenas por sua longevidade, mas pela relevância ininterrupta de sua atuação.
Ao longo de seus 70 anos de carreira, Rosa Grena Kliass não apenas desenhou praças, parques e avenidas. Ela desenhou, sobretudo, um novo jeito de viver as cidades — mais inclusivo, mais humano, mais verde. E é exatamente por isso que seu nome continua sendo referência incontornável quando o assunto é arquitetura da paisagem no Brasil.