As cidades se tornaram organismos complexos, vibrantes e, ao mesmo tempo, desafiadores. Em um cenário marcado por mudanças climáticas, crescimento populacional e comportamentos urbanos cada vez mais imprevisíveis, a tecnologia deixou de ser apenas uma promessa futurista para assumir um papel estruturante na vida cotidiana. Mas, como lembrou Andrew Smyth, diretor do Smart Cities Center at Columbia University’s Data Science Institute e referência mundial no campo das cidades inteligentes, tecnologia por si só não cria lugares melhores. Cidades verdadeiramente habitáveis emergem quando a inovação se aproxima das pessoas, observa seus ritmos e identifica suas necessidades reais.
A palestra ministrada por Smyth na Escola Interdisciplinar FAPESP reforçou uma virada importante no pensamento urbano contemporâneo: a de que o impacto mais significativo vem de intervenções hiperlocais, estudos minuciosos do território e ações de pequena escala capazes de transformar comportamentos, melhorar deslocamentos e ampliar a sensação de segurança no dia a dia.
A cidade como organismo vivo: quando a tecnologia aprende a observar o humano
Projetos desenvolvidos ao longo da carreira do engenheiro ilustram como essa mudança de perspectiva se materializa. Um dos exemplos emblemáticos é o modelo virtual da ponte de Manhattan, criado há quase três décadas. A estrutura já era profundamente monitorada, mas a criação do digital twin permitiu simular vibrações, testar reparos e prever impactos de fenômenos extremos, como furacões. Ao replicar o comportamento real da ponte, os engenheiros passaram a compreender nuances antes invisíveis.
Esse mesmo raciocínio se expandiu para outros campos. Em Nova York, uma cooperação entre engenheiros, equipes de saúde e bombeiros resultou em um sistema inteligente que indica, em tempo real, qual hospital é o mais adequado para cada atendimento emergencial. Ele cruza informações de trânsito, capacidade hospitalar, distância e dados clínicos do paciente. Segundo Smyth, o objetivo é único: “economizar tempo, reduzir custos e salvar vidas”.
Mais recentemente, o estudo da malha viária revelou como o desenho das ruas influencia diretamente o comportamento dos motoristas. Dados de velocidade, freadas bruscas e trechos de marcha lenta foram comparados a registros de acidentes e inseridos em modelos preditivos de machine learning. Dessa forma, o Departamento de Transportes da cidade passou a planejar intervenções viárias antes que novos acidentes ocorram, algo impossível de prever apenas pela observação humana.
O urbano visto por perto: o poder da microescala
Ao relembrar esses projetos, Smyth explicou que todos apontam para um mesmo lugar: “Quando olho para trás, fica evidente a crescente importância da multidisciplinaridade e do foco na microescala, no humano, no campo de estudo de cidades inteligentes”.
Ele observa que, por muito tempo, a pesquisa em cidades inteligentes priorizou análises macro, quase sempre voltadas ao sistema urbano como um todo. Embora úteis, essas abordagens deixavam escapar detalhes fundamentais do cotidiano — detalhes que moldam comportamentos, desafios e percepções de segurança.
Smyth explica que a tecnologia atual permite justamente o contrário: olhar a cidade com alta precisão. “O foco em resolução mais local permite entender melhor a dinâmica urbana, captando sinais de mudança”, afirma. O pesquisador cita transformações já evidentes, como o envelhecimento populacional, o aumento de compras on-line, a explosão do uso de entregas rápidas e até novas pressões climáticas que afetam a vida urbana de maneira desigual.
O resultado é uma cidade que responde melhor às pessoas porque passa a enxergá-las de fato.
Privacidade: o grande desafio das cidades inteligentes no século 21
Mas essa aproximação entre tecnologia e vida cotidiana acende um alerta indispensável: a privacidade. Para Smyth, esse é um dos maiores obstáculos para que cidades inteligentes prosperem em sociedades democráticas. “Privacidade é um valor essencial, pois a falta de confiança leva as pessoas a ver sensores como instrumentos de vigilância”, comentou durante o evento da FAPESP.
Para enfrentar esse dilema, o Center of Smart Street Scapes, do qual Smyth também é diretor e pesquisador principal, vem desenvolvendo sistemas operacionais mais rigorosos no tratamento de dados. Alguns projetos, por exemplo, utilizam câmeras de baixa resolução exclusivamente para medir velocidade do tráfego, evitando qualquer risco de identificação individual. A proposta é estabelecer níveis diferentes de privacidade, de acordo com o tipo de informação trocada.
A mensagem é clara: não existe cidade inteligente sem cidade ética.
Um trabalho que nunca termina
Ao final da apresentação, Smyth sintetizou o que talvez seja a essência de seu trabalho. “Tornar as cidades mais habitáveis é possível, mas é uma tarefa contínua. Os desafios urbanos, assim como esses projetos, não acabam nunca”, afirmou.
Essa visão reforça o que pesquisadores e urbanistas brasileiros também têm defendido, de acordo com análises publicadas pela Folha de S.Paulo, pelo Nexo Jornal e por veículos como ArchDaily Brasil: o futuro das cidades não será construído apenas com sensores, algoritmos ou plataformas digitais — mas com decisões que valorizem as pessoas, suas rotinas e suas necessidades mais básicas.
Cidades mais inteligentes, portanto, não são aquelas que apenas acumulam tecnologia. São aquelas que sabem utilizá-la para tornar a vida mais digna, mais segura e mais humana.





