Na paisagem tranquila da Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, surge uma construção que, à primeira vista, parece uma obra de arte. E é. Mas mais do que estética, essa casa erguida com cerca de 8 mil garrafas de vidro é resultado direto de uma urgência: a busca por moradia digna. A iniciativa, liderada por Edna Dantas, 55 anos, e sua filha Maria Gabrielly, 27, transcende o abrigo físico e se consolida como um manifesto vivo de sustentabilidade, autonomia e ancestralidade.
A pandemia impôs muitos desafios, e para Edna e Gabrielly, foi também o ponto de partida para uma nova vida. Expulsas do imóvel alugado onde moravam, decidiram transformar o problema em solução. “Começamos a recolher as garrafas em 2020, quando tudo parou. Minha filha teve que trancar a faculdade, e decidimos transformar o que estava acontecendo em algo nosso”, contou Edna em entrevista ao Metrópoles. O terreno já era delas. O resto — criatividade, técnica e garrafas descartadas — veio com o tempo, a resiliência e a observação atenta do entorno.
Quando o lixo vira matéria-prima de afeto e resistência
A coleta de resíduos na região é precária: sem data certa e sem política de coleta seletiva, toneladas de lixo são descartadas em terrenos baldios. Foi aí que mãe e filha viram uma oportunidade. As garrafas começaram a ser resgatadas, lavadas e empilhadas com um cuidado quase cerimonial. Mais do que reaproveitamento, o processo resgatava também uma herança cultural. “Sempre trabalhei com reaproveitamento. Venho de uma família do agreste que já reutilizava tudo. Atuei em cooperativas como educadora socioambiental. São mais de 30 anos com reciclagem”, afirmou Edna.

Gabrielly, com sua formação em design de moda, trouxe um olhar técnico e estético para o projeto. As garrafas foram posicionadas de cabeça para baixo, o que ajudou a filtrar a luz, criar padrões visuais únicos e reduzir o uso de outros materiais. “Virou um design nosso, uma tecnologia nossa”, destacou a jovem.
A casa que cresce de dentro para fora
Batizada de Casa de Sal, a residência foi construída aos poucos, como quem borda uma colcha de retalhos. Os primeiros 17 metros quadrados ficaram prontos em três meses — o suficiente para abrigar mãe e filha enquanto a construção continuava, agora de dentro para fora. Em dois anos, o projeto chegou aos sete cômodos. Mas, mais do que números, o valor da casa está em seu simbolismo.

“É a maior conquista da minha vida. A gente uniu arte, ancestralidade, moradia e resistência num só lugar”, afirmou Edna com emoção. Para elas, a casa representa uma forma de viver que respeita o ambiente, a cultura e o território. É um espaço afetivo que carrega memória, criatividade e a força de duas mulheres que não aceitaram ser invisibilizadas.
Muito além da moradia: turismo de base e consciência coletiva
Hoje, a Casa de Sal é também uma hospedagem alternativa, listada em plataformas de aluguel por temporada. Mas não se trata de um turismo convencional. A proposta é de ecovivência, uma experiência que inclui troca de saberes com a comunidade, discussões sobre racismo ambiental, preservação e autonomia territorial. “A casa virou um instrumento de diálogo”, resume Edna.

A construção, que impressiona pela estética colorida criada pela filtragem da luz através do vidro, também emociona pela narrativa que sustenta cada parede. Tudo ali comunica uma escolha consciente de não seguir os moldes tradicionais — nem da arquitetura, nem da sociedade. “É a arte da minha filha, é a minha arte. Representa o que acreditamos: dignidade para viver com autonomia numa comunidade tradicional”, reforça.
Design, moda e novos caminhos para o futuro
A história de reinvenção de Edna e Gabrielly não começou com a casa. Desde 2014, elas comandam a Cabrochas, uma marca de moda sustentável que começou como brechó e virou referência em estilo de vida consciente. O projeto promove a moda circular, costura com afeto e ressignifica tecidos — algo que agora se estendeu às paredes de sua própria moradia.
Com a conclusão da Casa de Sal, mãe e filha querem mais. Desejam expandir a técnica para outros territórios do Brasil, levando não apenas um modelo de construção, mas um modo de pensar e agir. “Queremos inspirar outras pessoas, outras mulheres. A gente construiu com o que tinha, com o que sabíamos. Hoje queremos compartilhar”, conclui Edna.