Resumo
- A Hypenia macrantha, planta do Cerrado, lança pólen em beija-flores por meio de um mecanismo explosivo para aumentar suas chances de reprodução.
- O disparo de pólen atinge 2,62 m/s e remove grãos deixados por outras flores, promovendo uma disputa direta entre gametas masculinos.
- A flor alterna entre fases masculina e feminina, permitindo múltiplas estratégias reprodutivas numa mesma planta.
- O estudo, apoiado pela FAPESP, é o primeiro a demonstrar a substituição ativa de pólen no corpo de polinizadores.
- A pesquisa destaca a complexidade das estratégias reprodutivas vegetais e a importância do Cerrado para descobertas científicas.
No momento em que um beija-flor mergulha seu bico no interior de uma flor da espécie Hypenia macrantha, à beira de um rio no Cerrado, ele não está apenas saciando sua busca por néctar. Está, sem perceber, se tornando palco de uma competição reprodutiva invisível entre plantas. Com um leve toque, a ave ativa um mecanismo explosivo: grãos de pólen são arremessados como minúsculos projéteis e grudam no seu bico — substituindo, às vezes, grãos depositados por outras flores anteriormente visitadas.
Essa dinâmica inusitada, investigada por pesquisadores brasileiros e sul-africanos com apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), representa uma das mais surpreendentes formas de competição entre gametas masculinos no reino vegetal. O estudo, publicado na revista The American Naturalist, destaca o potencial dessa disputa para aumentar o sucesso reprodutivo das plantas em ambientes biodiversos como o Cerrado.
Uma catapulta floral com precisão cirúrgica
O disparo do pólen ocorre por meio de um sistema mecânico natural semelhante a uma catapulta. Ao tocar a flor ainda em sua fase masculina, o beija-flor ativa a estrutura que ejetará os grãos a uma velocidade de 2,62 metros por segundo — o equivalente a 9,5 km/h. É uma das ejeções mais rápidas já registradas entre plantas, embora ainda distante da campeã Morus alba (amora-branca), que dispara seu pólen a impressionantes 612 km/h.
Para entender como essa ejeção impacta a fertilização, os cientistas utilizaram pontos quânticos fluorescentes — partículas nanométricas que brilham sob luz ultravioleta — para marcar os grãos de pólen. Dessa forma, foi possível acompanhar o percurso deles entre flores. O experimento revelou que, após o disparo da H. macrantha, até 75% dos grãos previamente aderidos ao bico da ave podiam ser removidos, criando espaço para novos grãos da última flor visitada.
Competição entre plantas: uma guerra de substituições
O estudo propõe uma nova leitura sobre a reprodução vegetal. Durante muito tempo, a ciência focou majoritariamente nas estruturas femininas das plantas — frutos e sementes — por serem mais visíveis e fáceis de rastrear. O trabalho, no entanto, revela que as estratégias masculinas também são sofisticadas, ativas e — até certo ponto — agressivas. O espaço disponível no corpo do polinizador torna-se um território de disputa direta, onde vence quem melhor se posiciona (ou quem remove o adversário).
Segundo os autores, essa é a primeira evidência concreta de substituição ativa de pólen entre flores por meio de um mecanismo físico. O beija-flor, nesse processo, age como mensageiro involuntário e como campo de batalha ao mesmo tempo.
A planta que muda de sexo
Outro fator que surpreendeu os cientistas foi a cronologia da floração da Hypenia macrantha. Após disparar seu pólen, a flor deixa a fase masculina e entra, em um período de cerca de dois dias, na fase feminina, quando então passa a receber pólen de outras flores. Com até dez flores por planta, parte delas masculinas, parte femininas, a estratégia da espécie é eficaz: ao visitar várias flores da mesma planta, o beija-flor amplifica o alcance e a chance de fecundação.
Essa sequência floral cria um efeito dominó: cada nova flor visitada tem potencial para substituir os grãos anteriores, mantendo o controle da reprodução em favor da planta mais recentemente acessada.
Um campo fértil para novas descobertas
Apesar da semelhança com as complexas estratégias reprodutivas do reino animal — como os ganchos em pênis de libélulas ou os “tampões copulatórios” de certos mamíferos —, muitos desses comportamentos também ocorrem entre plantas, embora de forma mais sutil.
O trabalho, realizado com a colaboração de universidades brasileiras e estrangeiras, abre caminho para novas investigações sobre como a competição entre gametas vegetais pode moldar a evolução das espécies. A escolha da Hypenia macrantha como objeto de estudo se mostrou crucial: trata-se de uma espécie com estruturas reprodutivas visíveis, comportamento responsivo e distribuição natural em regiões com rica biodiversidade.
O Cerrado como laboratório natural
Além de revelar o comportamento inesperado de uma planta aparentemente simples, o estudo reforça a importância do Cerrado como berço de inovações evolutivas. Em ambientes onde a diversidade de flores é imensa e os polinizadores são disputados a cada segundo, vencer essa corrida microscópica pode determinar a sobrevivência da espécie.
Ao compreender como essas disputas acontecem — e como plantas podem eliminar a concorrência usando mecanismos explosivos —, os cientistas avançam também na compreensão dos limites da reprodução vegetal e da interação entre espécies.
Da delicadeza ao confronto
Embora muitas vezes vistas como delicadas e passivas, as flores podem esconder estratégias reprodutivas surpreendentemente ativas e competitivas. A cada disparo de pólen, a Hypenia macrantha mostra que a natureza é feita de beleza, sim — mas também de engenhosidade, disputa e sobrevivência.
Com a ajuda de novas tecnologias, como a marcação com pontos quânticos e a análise de alta velocidade, essas histórias invisíveis começam a ser reveladas. E, com elas, uma nova perspectiva se abre sobre o papel ativo que as plantas exercem na continuidade da vida.





