A inteligência artificial deixou de ser apenas uma fronteira tecnológica e tornou-se o eixo central das grandes transformações contemporâneas. A velocidade com que ela se integra ao cotidiano — das relações sociais à lógica dos mercados — inaugura um cenário sem precedentes, no qual inovação, economia e cultura se entrelaçam de forma irreversível. Foi nesse contexto que o painel “Inteligência Artificial e o redesenho do futuro socioeconômico global”, realizado no encerramento do Fórum Inovativos 2025, provocou uma discussão que não se limitou ao impacto da tecnologia, mas à maneira como ela remodela o próprio conceito de humanidade.
Com especialistas de áreas distintas, o encontro explicitou um ponto sensível: a IA já não apenas influencia, mas redefine estruturas sociais, exigindo adaptações urgentes de governos, empresas e cidadãos. E, embora o debate tenha reunido visões divergentes — da prudência ética ao otimismo tecnológico —, o consenso foi claro: estamos diante de um ponto de inflexão histórico.
O momento inédito da era digital
A mediação de Elaine Coimbra, vice-presidente da ABRIA, estabeleceu o tom da conversa ao destacar o caráter excepcional da era atual. Ela lembrou que, pela primeira vez, três ciclos tecnológicos avançam sincronizados, provocando rupturas simultâneas em diversos setores da sociedade.
“Pela primeira vez na história da humanidade, a gente tem três superciclos simultâneos… Temos os superciclos da IA, do IoT e o da biotecnologia. Esses três superciclos estão se retroalimentando. Nunca na história tivemos algo assim – nem com a industrialização, nem com a internet.”
A fala sintetiza um dilema contemporâneo: o ritmo da inovação ultrapassa a capacidade humana de absorver mudanças, gerando um impacto direto em comportamento, economia e política. A tecnologia, antes periférica, tornou-se a matriz de todos os debates sociais relevantes.
A disputa ética e o dilema dos direitos fundamentais
O painel ganhou profundidade quando Paola Cantarini, pesquisadora do Observatório Brasileiro de Inteligência Artificial (OBIA) do Nic.br, ampliou a discussão para além dos aspectos técnicos, introduzindo uma reflexão crítica sobre a natureza da IA.
Segundo ela, compreender o fenômeno exige olhar para questões epistemológicas e ontológicas — não apenas para o desempenho das máquinas, mas para o modo como elas passam a constituir a experiência humana.
“A tecnologia não é apenas uma ferramenta, mas uma força ontológica que constitui o ser humano… O uso da IA pode afetar direitos fundamentais. Precisamos olhar os dois lados da balança: os riscos e as oportunidades.”
Sua análise reforça que não basta regular algoritmos: é preciso pensar em justiça, diversidade de perspectivas e nas implicações profundas do uso massivo de sistemas inteligentes. A IA, na visão de Paola, não apenas opera no mundo; ela reformata estruturas sociais.
O impacto econômico e a visão tecno-otimista
Enquanto a discussão ética apontava para desafios estruturais, Harold Schultz Neto, head de IA da MakeOne, trouxe ao debate uma visão mais pragmática e otimista. Para ele, a tecnologia tem um papel catalisador no crescimento econômico — e seus efeitos já são tangíveis.
“A primeira solução que entregamos reduziu um processo que levava 187 dias para 22 minutos. Isso destrava poder econômico… A IA pode multiplicar por dez o que fazemos, sem substituir o humano.”
O contraste entre Brasil e Estados Unidos também marcou sua fala, sugerindo que o país ainda opera a partir de uma lógica defensiva, enquanto outras nações já pensam em expansão e protagonismo digital. A IA, nesse sentido, não é risco: é oportunidade de escala.
Empresas, produtividade e o novo consumidor
A perspectiva corporativa ganhou força na fala de Leonardo Uno, gerente executivo de compliance em tecnologia do Banco do Brasil, ao descrever como a IA começa a moldar as expectativas de consumidores e colaboradores.
“O cliente espera um atendimento tão bom quanto o de um GPT. O funcionário também quer usar IA no trabalho. Por isso, criamos laboratórios de experimentação mais flexíveis.”
Uno reforça que eficiência não basta: é necessário repensar modelos de negócio para que o uso da IA amplie valor, e não apenas reduza custos. A tecnologia, ao se popularizar, redefine padrões de qualidade e obriga as empresas a uma adaptação contínua.
Criatividade sob pressão: o audiovisual em transição
Na economia criativa, o diretor de cena Ricardo Careli expôs os dilemas de um setor historicamente dependente de mão de obra intensiva. O uso de IA, segundo ele, alterou processos, mas gerou percepções equivocadas sobre custo e velocidade.
“A IA é uma ferramenta incrível, mas não é mais rápida nem mais barata como muitos imaginam… A criatividade humana continua sendo o que deve ser preservado acima de tudo.”
Sua fala evidencia um alerta: apesar dos avanços, nenhuma tecnologia consegue substituir o repertório emocional, estético e intuitivo que fundamenta a produção artística. O risco, portanto, não está na substituição do humano, mas na padronização da criatividade.
Regulação, ética e a urgência de um novo pacto social
Para fechar o debate, Ricardo Lagreca, diretor jurídico e de relações governamentais do Mercado Livre, reforçou que a consolidação da IA exige um equilíbrio que permita inovação sem sacrificar direitos.
“A ética é a base de tudo… Precisamos pensar de forma disruptiva — não apenas digitalizar o que já existe, mas empoderar o cidadão com ferramentas realmente transformadoras.”
Ele citou avanços recentes em políticas públicas, como iniciativas estaduais que conciliam experimentação com proteção, indicando que o Brasil começa a estruturar um ecossistema regulatório mais maduro.
Um futuro que exige responsabilidade, ambição e coragem
A convergência das falas revela um ponto incontornável: o futuro da inteligência artificial depende diretamente da capacidade humana de equilibrar velocidade e prudência. Entre entusiasmo econômico, dilemas éticos e desafios criativos, emerge uma verdade essencial: a IA não transformará apenas o mundo — ela transformará o próprio conceito de sociedade.
E caberá aos governos, às empresas e principalmente aos cidadãos definir se essa transformação será desigual ou emancipadora.





